Desespero em São José da Mortalha Branca

Desespero em São José da Mortalha Branca

    Meu nome é José dos Santos Pereira e este é meu relato.  mais uma lorota de um sertanejo, mas eu garantoPode ser que você ache que estou mentindo, que é só que tudo isso é real.
    Meu avô se chamava Daniel Bonifácio Pereira, morava no Rio de Janeiro, mas era nascido em Parahyba do Norte, hoje João Pessoa.Ele foi para o Rio com os pais quando era bem pequeno, pois a mãe sofria de uma doença rara cujo tratamento só poderia ser feito lá.Ela morrera quando meu avô tinha vinte anos. Já casado e com filhos, meu avô José resolveu conhecer as origens de sua mãe que sempre fora cautelosa em falar do passado. Conversando com o pai, meu avô descobriu que seus pais se conheceram em Parahyba do Norte, mas a sua mãe era de uma pequena cidade no sertão, chamada São José da Mortalha Branca.
    Meu avô pegou o primeiro, e único, ônibus que ia diretamente a cidade-natal de sua mãe. Era um ônibus velho e cheio de lama, o motorista com a pele bem brilhante e olhos um pouco amarelados não falou uma palavra todo o caminho só coçava-se, como se sofresse de alguma crise alérgica constante. O caminho todo não teve paradas, só pararam quando chegaram ao destino.
    Assim como todas as cidades do interior, São José da Mortalha Branca tinha poucos habitantes. Todos muito acanhados, mas muito curiosos, fingiram continuar seus afazeres como se o ônibus não estivesse ali. Daniel notara que estava sendo observado, mas imaginou que era só por ser novo naquele lugar. Da parada de ônibus se podia ver a praça que servia como centro não oficial, a direita a velha igreja que já estava aos pedaços, a esquerda o templo da Ordem Ocultista de Ragish e atrás da praça, a vendinha do seu Farias.
    Seu Farias era um homem velho, pra lá de seus sessenta anos. Muito alto, magro, e bem pálido para um morador do interior do nordeste, seu Farias sabia de tudo que acontecia na cidade e não podia perder a chegada de visitante inesperado. Apressou-se e fez sinal com a mão para o rapaz que, do outro lado da praça, pode ver bem o gesto do comerciante.
    Assim que se aproximou do balcão, meu avô foi indagado sobre seu intuito na cidade, já que ninguém a visitara por décadas. Meu avô respondeu contando tudo que sabia sobre sua mãe, o velho Farias ao ouvir a historia do jovem rapaz, alertou-lhe que ninguém saíra de São José da Mortalha Branca exceto uma moça a muito tempo. E disse-lhe mais:



- Se você é descendente desta moça é melhor ir embora daqui ainda hoje.- e começou a tirar as coisas do balcão, expulsando os poucos clientes que lá estavam testemunhando tudo, inclusive a conversa dos dois homens no balcão. 




     Meu avô pediu desculpas por não entender a gravidade do problema e pediu explicações, seu Farias o puxou e encostou o rosto próximo ao rapaz e disse: 




- Procure o Damião hoje a noite, na saída do bar, ao lado da pensão ali, ó.- e apontou para uma casa ao lado do templo, com as inscrições "Bar da Dona Adélia" no topo da porta. 

- Leve isto e dê ao Damião quando ele sair. Ele é o velho mais bêbado no lugar, mas espere que ele saia de lá.- disse-lhe entregando uma garrafa de cachaça.



    Meu avô estava exausto e confuso com tudo aquilo. Aquela história era demais para ele, então resolveu descansar um pouco na pensão ao lado do estabelecimento do velho Farias.

    Uma casa com primeiro andar e um letreiro com somente a palavra "Pensão" pintado sobre a porta. Abrindo a porta da pensão via-se uma escadaria à esquerda, à direita janelas e à frente, um balcão com seu respectivo balconista e uma plaquinha com os dizeres "recepção". O balconista era de um olhar vago, quase perdido, como se não estivesse ali. Se aproximando do balcão, meu avô Daniel pediu-lhe um quarto e o homem em um movimento bem lento e mecânico pegou uma das muitas chaves enferrujadas e entregou ao meu avô. Ele subiu até o quarto carregando a própria mala e sem a companhia do balconista.
    Chegando no quarto que já estava escuro, descobriu que não havia candeeiro apenas uma vela. Ao ascende-la com os fósforos, que sempre carregava por segurança, percebeu que não tinha água nas torneiras nem lençóis limpos para sua tristeza. Resolveu tirar um cochilo na poltrona rasgada ao lado da janela que dava para frente da pensão.
    O sono foi muito perturbado, tinha pesadelos frequentes em que via imagens de pessoas e serpentes, em outros ele era a serpente, e também tinha aquela doce imagem muito parecida com a sua esposa. Decidiu levantar-se e se preparar para a busca ao bêbado Damião, ouviu um burburinho na porta da pensão e olhou pela janela afastando um pouco a cortina. Viu pessoas na porta e uma figura encapuzada caminhando entre as pessoas em direção a porta lhe chamou atenção. A figura era alta, mas não tao alta quanto o velho Farias. Cobria-se com um manto preto e falava com o balconista da pensão que apontou para a janela onde meu avô observara tudo. A figura entrou com o homem, meu avô pegou a garrafa que o velho Farias havia lhe dado e a empunhou como se fosse a mais afiada espada, se prostrou atrás da porta e, percebendo que a mesma não tinha tranca por dentro, se pôs em desespero. Em meio ao caos de seus pensamentos encontrou uma porta no banheiro do quarto onde estava, descobriu depois de arrombar com alguns chutes e empurrões que a porta dava para o quarto o lado. Entrou e começou a ouvir os passos no corredor, "são o balconista e a figura no capuz. " ele supôs, logo suas suspeitas foras confirmadas pelas sombras que se puseram na frente da porta.      Num golpe de racionalidade em meio a todo o medo que lhe tomava o corpo, Daniel resolveu pular a janela. Com a garrafa ainda nas mãos andou um pouco para trás e disparou em direção a janela deixando para trás as duas figuras de seus perseguidores. A figura foi até a janela e gritou palavras ininteligíveis para meu avô, mas que fizeram todo o sentido para as pessoas que estavam na frente da pensão que saíram em disparada no encalço do meu antepassado. O rapaz caíra sobre o telhado da venda do Farias e saiu correndo sobre ele em direção a rua que ficava do outro lado, lá ele conseguiu avistar o único morador que não se importara com sua chegada, o bêbado Damião.
    O bêbado era um homem baixo, barrigudo, cabelos brancos escondidos sobe um chapéu de couro muito usado pelos vaqueiros do sertão. Meu avô saltou do telhado sem ser visto, correu pela rua olhando para trás e quase esbarrou no pobre pinguço. Pediu-lhe desculpas, mas o velho barrigudo nem deu ouvidos continuando a caminhada. Daniel correu atrás do bêbado fazendo-lhe várias perguntas, mas sem respostas. Ao chegar de trás do bar, o bêbado Damião olhou para o rapaz e disse-lhe que responderia tudo se pudesse tomar um pouco da cachaça que o rapaz levara consigo. Meu avô olhou para o velho beberão e disse que ele poderia tomar tudo se contasse toda a história daquela cidade e porquê o perseguiam.
    Damião pegou-lhe a garrafa das mãos, abriu, bebeu um gole e, limpando a cachaça que escorrera pelo canto da boca começou a falar.
    "-Essa cidade teve seus dias de glória no inicio do século XIX, quando o coronel Sebastião de Alcântara Teixeira retornou depois de uma longa viajem a Europa. O coronel era muito católico quando partiu, mas voltara renovado em aparência e religião. Tinha conhecido um deus novo chamado Ragish, com corpo de homem e cabeça de serpente. Quando chegou a cidade foi logo pregando a palavra como um bom pastor. As beatas ao ouvirem tais blasfêmias foram logo chamar o padre da cidade que estava saindo da igreja. O padre foi até a praça acompanhado por uma comitiva de beatas e, assim como dois cavaleiros a disputa de uma donzela, travaram a maior batalha de gritos e orações para seus respectivos deuses. O coronel, clérigo de Ragish, dizia que faria o que o "falso deus", que os habitantes adoravam, não havia feito desde quando os Jesuítas puseram os pés nessas terras, fazer chover no sertão. Logo alguns sertanejos, os mais necessitados, traíram sua fé e devotaram-se a Ragish. Em alguns dias a cidade estava dividida, de um lado o padre, as beatas e alguns lavradores. Do outro lado o coronel e seus seguidores que, agora, trabalhavam na construção do templo de Ragish em frente a praça central da cidade. Era algo grandioso e horripilante quase satânico. O prédio muito parecido com as construções góticas da Europa tinha no Vitral da frente uma serpente e a baixo do vitral as inscrições "Ordem ocultista de Ragish".
    Um mês se passou desde a construção do templo e a maioria da cidade já havia sido convertida em ocultistas adoradores do deus serpente e o padre consumido pela ira em perder seus fiéis e pela pressão da diocese resolveu fazer algo a respeito. Na missa da noite ele convocou todos que ainda frequentavam a igreja e dando-lhes tochas guiou-os até o templo da ordem, onde também acontecia um culto, e gritando palavras de ordem entre versículos bíblicos ateou fogo ao prédio. O coronel, que se alto declarava emissário de Ragish, clamou em uma língua estranha por seu deus e uma torrente de chuva e ventania caiu sobre o templo assim que o homem terminou o clamor e quando as chamas se apagaram, um raio atingiu o topo da igreja e a chuva sessou no mesmo instante. As beatas correram para suas casas e o padre assustado foi coberto por homens de túnica negra que o levaram para dentro da ordem e o sacrificaram em nome de Ragish. O Corpo do padre foi pendurado na cruz que adornava o topo da igreja e que levara o raio na noite anterior. A cidade passou a ter chuvas frequentes depois desse dia e o povo ficou muito feliz até o dia em que Ragish pediu seu preço.
     Uma noite, no templo da Ordem ocultista de Ragish, o coronel e sacerdote Sebastião mergulhou em um tanque de serpentes para provar a seus fiéis que seu deus era bom e os protegeria de todo mal. Tudo ocorreu como esperado e o sacerdote pediu que todos os fiéis fizessem o mesmo. Um a um, as pobres almas foram mergulhando em meio as serpentes até que chegou a vez de uma moça. Branca e de cabelos negros como a noite, a jovem donzela saltou em meio aos répteis de sangue frio e com um grito agudo de dor e sofrimento foi soterrada pelas cobras. O sacerdote preenchido por sua fé inabalável, enfiou a mão entre as serpente e tirou o corpo já frio da moça de dentro do tanque. Uma serpente escapou e foi até as pessoas que já faziam uma roda em volta do sacerdote e da pobre moça morta, o animal se posicional entre a moça e os fiéis e após pica-la caiu morta ao chão e a moça gritou novamente de dor, como se nascera novamente. Desde então a moça não foi mas a mesma, começou a ficar deitada na rua sobre o sol escaldante, coçava-se constantemente, passou a não sair de casa exceto para banhos de sol ao meio dia. O povo começou a dizer que ela havia se transformado e ninguém ousava chegar perto de sua casa. Alguns meses depois, a ordem foi enfeitada com flores brancas e no culto da noite uma noiva esperava do lado de fora enquanto os fiéis entravam, seria o primeiro casamento nessa nova religião e todos estavam ansiosos para ver quem seria o novo casal.     O noivo esperava perto do altar quando a noiva entrara, toda de branco com o rosto envolto num véu que mal dava pra ver seu rosto.     Quando enfim chegou ao altar, virou-se para seu noivo, o sacerdote ergueu um objeto estranho com o que parecia ser uma serpente de bronze enrolada e, dizendo palavras na sua língua sagrada, desceu o objeto entre  os noivos e disse para o rapaz beijar sua esposa. O rapaz feliz e curioso pois conheceria sua esposa naquele momento, ergueu o véu e para seu desgosto deparou-se com o rosto meio humano meio serpente de sua amada, com presas saindo pelo queixo e buracos no lugar do nariz ela se pôs sobre ele agarrando-o com os braços cheios de escamas e enrolando sua cauda nas pernas do rapaz. Após alguns minutos de gritos do rapaz e rosnados da fera, ela o libertou de sua prisão. Ele estava com o rosto espantado e roxo, mal respirava.O rapaz morrera dias depois das fraturas que sofreu. A cidade continuou seguindo sua vida normalmente, fazendo seus rituais e cultos durante vinte anos, até que uma moça recusou-se a entrar no tanque das cobras e fugiu para nunca mais voltar. Depois disso não houve chuvas milagrosas e a cidade voltou ao seu anonimato, mas a moça não fugiu sozinha. Ela estava grávida quando tudo aconteceu, poucos meses ainda, nem dava pra ver a barriga. Pobre garota." disse o velho tomando o ultimo gole da cachaça e desmaiando logo em seguida.
      Meu avô ficou pensativo por um tempo, mas logo os pensamentos se foram com os gritos e insultos da população liderados pela figura encapuzada. O pobre rapaz, nada podia fazer se não correr o mais rápido que podia. Desaparecer na escuridão foi o único jeito de escapar da fúria incontrolável daquele povo.
     Vô Daniel correu o mais rápido que pode entre as vielas e ruas vazias iluminadas apenas pelo luar. Ao virar numa esquina percebeu as silhuetas sombrias de seus perseguidores projetadas nas paredes das casas por tochas carregadas pelo povo ensandecido. Sentindo-se encurralado, meu avô ouviu uma voz grave que sussurrava ao longe chamando-o. Ao procurar na escuridão percebeu a figura esguia e pálida de Seu Farias em uma porta. Parecia a escolha obvia aceitar a oferta de ajuda, e assim, Daniel correu em direção a porta o mais rápido que pôde e a tempo de não ser visto pelos seguidores de Ragish que viraram a esquina oposta segundos depois. Dentro da casa, de costa para a porta fechada, podia-se ver uma escada logo a frente, a direita uma pequena sala com uma poltrona e uma mesinha de centro com um castiçal em cima que iluminava o ambiente e deixava os outros cômodos escondidos nas sombras. Uma cortina grossa, que cobria a janela, era tudo que mantinha a nossa frágil furtividade imaculada. Seu Farias fez sinal para que meu avô fizesse silêncio quando ia começar a falar. O gesto foi certeiro, pois o povo passava pela porta falando muito alto.
      Vozes roucas e cheias de chiados podiam ser ouvidas em meio a multidão de revoltosos. Quando não se podia mais ouvi-los, Seu Farias afastou um pouco a cortina para conferir se já haviam partido. Com um suspirar aliviado, fez sinal de que tudo estava bem. Apressou-se a falar tudo que ouvira na cidade enquanto meu avô tentava frustradamente descansar na pensão: 



- Olha só, rapaz.Não sei seu nome nem de onde veio, mas espero que já esteja de partida. - alertou o velho - Você sabe o que podem fazer com você? Faram o mesmo que fizeram com o padre quando eu era só um menino.

- E o que ouve com o padre?- perguntou meu avô
- Eles arrancaram a pele dele e o penduraram no alto da igreja e ainda fizeram ele ser cozido por um raio.
- Então pegarei o primeiro ônibus pra fora desse lugar.
- Ônibus?- perguntou seu Farias, frustrado- O ônibus não vai sair da cidade até te pegarem, você vai precisar de outro veículo. Use até os próprios pés, se necessário, mas fuja rápido.
- Será que existe algo que eu possa usar além dos pés?
- O o coronel tem um meio de sair daqui, apesar de só usar na cidade.
- O que ele tem, homem, diga sem demora.
- O Coronel tinha um automóvel que trouxe de navio da Europa. Poderias usa-lo, mas terá que ir até a casa do Coronel que fica um pouco longe.
- Tudo bem, acho que é a única saída. De outra forma morrerei mesmo.



    Meu avô abriu a porta quase atropelando o pobre Farias, olhou para os lados procurando rastros de perigo. Aliviado por não encontrar nada, perguntou o caminho para o comerciante que espiava pela fresta da porta. 




- Vá, siga a estrada de terra até encontrar a porteira, não tem erro.




    Raios cortavam o céu mas nenhum sinal de nuvem. A noite escura servia de manto para o rapaz, que caminhava lentamente até encontrar a porteira e dela pode avistar a suntuosa mansão do coronel Teixeira.

    A casa parecia abandonada exceto pelas luzes tremeluzentes de velas e dos homens estranhamente magros e altos que montavam guarda na porta do, outrora, luxuoso imóvel.
    Meu avô Daniel procurou com o olhar o automóvel que o seu Farias lhe contara, mas não teve sucesso. Estava escondendo-se por detrás de uma moita alta, quando foi surpreendido:
- Se queria se embrenhar no mato era melhor ter comprado um gibão ao invés daquela cachaça. - comentou o velho Damião, que seguira meu avô até o local.
- O que você ta fazendo aqui? como chegou tão rápido?
- O acaso ajuda aos bêbados e distraídos, meu nobre. - comentou Damião com a voz de quem quem deu prejuízo a todos os bares das redondezas.
- Esconda-se, alguém pode te ver aí.
- Eles não ligam pra mim, não. - comentou o velho - Eu sou o bêbado da cidade, ninguém acreditaria no que eu contasse. Só por curiosidade, o que faz aí escondido? Tá caçando calango?- indagou o bêbado caindo na gargalhada.
- Estou procurando o automóvel do coronel, vou usa-lo pra fugir.
- Pois veja só, estás com sorte. Lá vem o coronel. - disse o velho, tirando o chapéu e acenando para a figura no carro.
- Não faças isso, homem.- ordenou assustado o rapaz, que escondera-se mais atrás dos arbustos sem folhas.
- Fique despreocupado, sou um escudo social.- explicou o velho beberrão - Tudo que está perto de mim desaparece comigo pelo milagre da rejeição.



     Meu avô olhou por cima do arbusto e viu a figura coberta pelo manto negro entrando na grande casa. Percebeu que o automóvel ficara estacionado ali e, antes que pudesse fazer algo, Damião adiantou-se e foi acenando para os "guarda-costas" da figura que entrara.




- Opa, muito boa noite meus jovens rapazes. Que bela noite estamos presenciando, não é mesmo?




     O rapaz aproveitou que os homens estavam distraídos com a conversa fiada do bêbado e avançou para o automóvel só para perceber que estava trancado. Resolveu entrar para roubar as chaves. 

     Ao entrar na mansão mal conseguia enxergar o caminho, as luzes bruxuleantes das velas iluminavam muito pouco. Daniel pôde ver a sala com uma mesa no centro e a escadaria que se dividia em duas para os lados. No andar térreo, duas portas nas laterais levavam a outros cômodos da área comum. O rapaz decidiu olhar na mesa que ficava ao centro da sala, bem na sua frente. Pegou um castiçal, que ficava num móvel encostado a parede, se aproximou da mesa e percebeu que não havia nada lá que o interessasse. Preferiu subir e procurar em todos os cômodos, um a um. Abriu as portas do andar de cima, o ranger das dobradiças parecia gritos como se as portas sofressem ao abrir.
     Pela brecha na porta viu luzes e sombras, esconde-se mas ainda tentou observar o que se escondia ali. Abriu um pouco a porta e viu uma bela moça, deitada, lendo um livro sobe a luz das velas postas na mesa de apoio. Os cabelos negros e a pele pálida da moça lembraram-no de sua esposa, que o esperava em casa inocentemente sem saber no que o marido se meteu. A moça, percebendo que era observada, ordenou que quem fosse entrasse. O rapaz assustado por ter sido pego, mas impressionado pela beleza da donzela, entrou no quarto e contemplou a imagem que o hipnotizou. 



- olá, meu amor! - disse a moça com sua voz doce e encantadora. 


     Antes que o rapaz pudesse responder, alguém empurrou a porta. Num pulo o rapaz esconde-se atras da porta e prendeu a respiração. Exceto pela voz masculina, pode ouvir tudo o que era falado. A moça deitada era filha da figura que o perseguia percebeu, pois a figura ainda usava o grande manto negro. Pai e filha se despediram e a figura saiu fechando a porta logo atrás, não se ouviu passos nesse momento. O rapaz, agora podendo soltar o fôlego, foi de encontro a garota e perguntou onde o pai dela guardava as chaves do automóvel. A garota respondeu com outra pergunta.



- Você não se lembra de mim, meu amor?

- Já fomos apresentados?
- sim, - respondeu a donzela com sua voz mais doce e um sorriso inocente desconsertado - fomos apresentados por nossos sonhos.



     Naquele momento, meu avô se lembrou que, a muito, sonhara com uma jovem moça muito parecida com a que estava deitada a sua frente. Logo depois casou-se com sua esposa e pensou que ela era a mulher dos seus sonhos, mas agora sabia que havia se enganado. A moça, agora sentada encostada na cabeceira da cama, olhou para o rapaz e disse:




- Era eu nos seus sonhos, te chamando. - disse ainda com a voz sedutora - Dê-me um beijo e te darei tudo o que quiser.




     Meu avô, ainda hipnotizado, não conseguiu recusar o pedido da doce donzela e caiu em seus braços como uma presa fácil. Sentiu os braços da moça entrelaçando-se em seu pescoço, o toque suave da pele macia o deixou a vontade. As mãos dele desceram da nuca até os quadris da moça passando pelas costas, foi quando percebeu que algo estava errado. Descendo um pouco mais a mão, sentiu o corpo macio da moça ficar rígido e frio como se usasse uma roupa de couro por debaixo das cobertas. Sentiu algo entrelaçar-se em suas pernas e, arrancando com violência os muitos lençóis que cobriam a moça, se deparou com uma grande cauda no lugar das pernas de sua donzela. Assustado, caiu da cama e foi se arrastando pelo chão até a porta. A moça lhe deu um recado antes que partisse.




- Você voltará para mim. - disse com a voz cheia de "chiados" e sotaque arrastado - Você voltará e seremos um só para sempre.




     Meu avô saiu correndo pela casa, a figura em negro saia de seus aposentos quando o rapaz passou pelas portas do quarto. Ele desceu pelas escadas e correu para a porta da frente que estava trancada. Mudou de direção e viu a figura do pai da moça descendo as escadas de forma ágil como se tivesse rodas no lugar das pernas. O invasor decidiu correr para os fundos da casa. Em meio a escuridão que o cercava, achou o brilho do molho de chaves inconfundível. Pegou-as como se fossem parte de um tesouro muito valioso e procurou a porta dos fundos, que estava destrancada. Passou pela porta e deu a volta na casa, com esperança de não encontrar os guarda-costas. Virando em direção a entrada da casa, viu o carro sem ninguém em volta. Correu para ele, destrancou-o, pôs a chave na ignição, virou as chaves, e ... Nada aconteceu. Virou mais uma vez, o veículo relinchou como uma mula teimosa, mas não ligou. Tirou a chave da ignição, assoprou-a e fez uma prece. Colocou a chave na ignição ainda de olhos fechados, girou a chave e quando o automóvel urrou como um alazão, abriu os olhos em comemoração e viu a figura do povo revoltoso em volta do veículo. Não se fez necessário pensar, pisou no acelerador e saiu atropelando quem tivesse na frente. Fez a volta em direção a cidade e acelerou a todo vapor para a salvação, não sem antes acenar para Damião que acenou de volta com o chapéu e saiu andando sem rumo.

      A viagem poderia ter servido de alívio, mas a mente do meu avô não o deixava esquecer o que tinha visto. Tudo parecia um sonho horrível, imaginou-se acordando na pensão onde descansou pela ultima vez e que tudo seria diferente pela manhã. Seguiu em alta velocidade pela estrada até voltar a cidade que estava vazia. Passou na rua onde morava o Seu Farias e o viu observando o movimento pela janela. Achava que tudo estava bem e que logo estaria nos braços de sua amada e rodeado por seus filhos quando o som de trovões cortou o céu e um raio atingiu em cheio seu carro. Desmaiou e despertou apenas para ver o automóvel chocar-se contra as paredes da velha igreja em ruínas.
     Quando acordou, se viu numa sala com uma mesa ensanguentada. A luz forte de um candeeiro iluminava o lugar, a esquerda viu a parede cheia de instrumentos e a sua direita, o pobre bêbado Damião. Acorrentados, os dois homens lamentaram por estar ali. Antes que falassem mais, três figuras entraram na sala. Todos homens, um deles vestia uma túnica vermelha com adornos dourados e os outro dois roupas comuns sobe aventais sujos de sangue.
     O homem de túnica começou a falar palavras estranhas deixou escapar pelo canto da boca sua língua bifurcada, como de uma serpente. Ele se aproximou de Damião e falou:



- Que pena vê-lo aqui, velho. - disse com a voz baixa mas audível a todos - Espero que agora possa aceitar Ragish como seu senhor e salvador.

- Eu não aceitarei essa abominação. Nasci cristão e não trocarei a eternidade por essa vida de pecado, seu herege.- disse escarrando na cara do homem.
- Então você encontrará a verdade e sofrerá as consequências.



     O homem de túnica começou a dizer palavras na língua estranha de antes, os homens que seguravam as correntes que prendiam Damião a parede repetiam em voz alta as palavras: " Girash, Ragish.", enquanto o homem de túnica sacava uma faca de lâmina curva e a aproximava do velho beberrão.

     Daniel, como bom católico, lembrou das palavras de seu livro sagrado e começou a recita-las:



- Lembrai do que diz a bíblia em Salmos 23,"O Senhor é meu pastor, nada me faltará

    Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas.
    Refrigera minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome.
    Ainda que andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tuu estás comigo; tua vara e teu cajado me consolam.
    Preparas uma mesa perante mim na presença de meus inimigos, unges minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda.
    Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias."



    Damião, em meio a dor dos cortes, repetiu todas as palavras até o último suspiro. Sua pele, arrancada morbidamente pelos homens, estava sobre a mesa e seu corpo ainda pendurado nas correntes. O homem de túnica se aproximou de Daniel com a faca ensanguentada nas mãos. Meu avô, virando a cara, tentava fugir da lâmina em vão e quando esta encostou no seu rosto uma voz doce interrompeu.

- Parem já. - ordenou a moça que estava sentada sobre uma cadeira com rodas - Não quero o meu noivo sem pele durante a cerimônia.

     Os homens fizeram uma reverencia e saíram da sala, a moça se aproximou e tentou beijar o rapaz que virou o rosto.

- Não faça isso, meu amor. - disse a moça- você ainda não entendeu que fomos feitos um para o outro? - indagou. - Tanto faz, depois de hoje você entenderá. - e saiu

     Algum tempo depois, meu avô acordou e se deparou com toda cidade a sua volta. O peso das correntes já não o incomodavam, pois já tinha sido retiradas. Ele se viu numa espécie de cripta iluminada, apenas, por bandejas de metal com óleo em chamas. A doce donzela, agora com um semblante maligno, começou a explicar o que estava acontecendo.



- Não te apavores, meu doce. Tudo se tornará claro. - disse a moça no mesmo tom doce de quando o conhecera. - Quando a sua mãe fugiu eu era só um bebê, ela foi a primeira noiva d o grande sacerdote Teixeira. - Explicou a moça - Ele a amava muito, mas ela não o queria. Mesmo depois de passar por seus doces e fortes braços, ela se foi e o ritual não se completou. Agora, realizarei o que meu pai não pôde. Eu e você, juntos, traremos Ragish ao mundo mortal para todos governar. - completou rindo alto, num coro macabro junto aos seus discípulos.




     Daniel levantou-se e disse:




- Não trarei abominação alguma para esta terra. - negou-se o rapaz - Não serei o algoz do mundo. - e caminhando até uma parede, pegou uma da bandejas que transbordavam de óleo em chamas, e jogou sobre si. O banho infernal o fez gritar de dor e sofrimento, mas, no fundo, sentiu que o beijo da morte era a única saída. 

     A figura em chamas correu em direção as escadarias sem rumo. As chamas lambiam a todos que estavam no caminho, ele subiu as escadas que o levaram até o salão do grande templo da Ordem Ocultista de Ragish. Em meio aos gritos, correu sem rumo,o mais rápido que pôde e sumiu na escuridão do chão rachado do sertão.
     Você pode se pegar questionando como eu, o neto de Daniel, sei de tudo isso se meu avô fugiu e nunca foi encontrado? Muito bem, sei de tudo isso, pois nas noites em que não consigo embriagar-me, nos meus sonhos, eu a ouço chamar o meu nome. Com sua voz doce ela me conta tudo e me chama para cumprir o destino no meu sangue.

Comentários